segunda-feira, 27 de outubro de 2014

UM CASO ESPECIAL


"É que no meu caso é diferente". 
- Garantiu!
"Mereço atenção especial e tratamento personalizado. Não que eu seja mais do que alguém, ou me ache o supra-sumo da geração. Isso não. Sempre fui boa de coração e humilde com o próximo. Nasci assim. Foi isso desde pequena. Mas é que sou diferente. De verdade.
Dizem até que sou espírito evoluído.  Talvez por isso, quem sabe, meu caso seja outro.
É que comigo o problema não é meu. Eu nada tenho com eles, que chegam sem serem convidados e se instauram na minha vida sem que eu possa controlar. Eles tomam de assalto meu cotidiano. Enquanto eu simplesmente mudo a TV de canal, enquanto pisco, enquanto nada tenho a ver com isso.
São os outros que me deixam assim. São eles quem provocam minha insônia, minha taquicardia, meus pesadelos. Meus, meus, meus,..., meus pensamentos mais pueris e sujos. 
Não fosse o resto do mundo, eu, que sou especial e diferente, estaria simplesmente em perfeitas condições".

domingo, 26 de outubro de 2014

BOM SENSO

Eu, como Fernando Pessoa, nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Talvez seja a única coisa em comum. Talvez não.
Mas de quem cometesse um deslize,  ou um mau gosto sequer, jamais tive notícias.
Todas, e não algumas, mas todas as pessoas que já passaram por mim na vida. Na rua, na chuva, na calçada. Que já puxaram conversa na fila da padaria, ou com quem tive uma aproximação um pouco mais duradoura do que um só momento apenas, talvez uns quatro ou nove, talvez rotina, são dotadas de razão, inquestionável, e de todos os motivos do mundo para agirem desta ou daquela forma.
É lógico!
É claro!
É óbvio!
Ó pá, só não vê quem é burro.
E nisso formamos times que jamais se modificam, a não ser que um pensamento estranho o corte, condenando-o à exclusão do grupo.
É incrível como a droga do outro é sempre mais pesada do que a minha.
Como o outro jamais saberá a verdadeira história do rock´n roll.
É unânime como uma pessoa dotada de clareza e informações críticas possa chegar a mesma linha de raciocínio que eu. Ou melhor, possa "alcançar" a minha lógica, pois é uma questão de aptidão. Aptidão para poucos.
O resto?
Ah, o resto é corja. 
É atraso. 
É o fim do caminho.

Em tempos de eleição, ou mesmo em qualquer tempo, o outro, que pensa diferente de mim, por mais que eu defenda diferenças, é um monstro ignorante e ingênuo. Obtuso mesmo, coitado. Diria até que atrasado. 

Alguém tão desprezível que não merece nem um microfone aberto. Nem a expressão da dor nem a do amor.
Só pode ser maluco. Ou, em tempos de maniqueísmo, só pode ser um "ente do mal".

O mais irônico é que, dizem, não se deve contrariar os malucos. 

Eles, os loucos, os outros, os que não foram dotados com a graça do (meu) bom senso nem da (minha) sensatez, não merecem a contradição. Nem perca tempo!
Afinal, ninguém conseguirá demovê-los de suas certezas. E se tem algo que diferencia os malucos de nós, os normais, é que eles não se engajam num diálogo onde valha a minha opinião, já que Possuem sempre a certeza. Seja a de um chip implantado, seja das vozes da tv que se direcionam aos escolhidos, seja do envenenamento da comida. 
É questão de crença inabalável. E é isto o que os classifica como desprovidos da razão: Não há dúvida. Não há conflito. Não há sequer a bipolaridade. 
Um "as vezes", um "de vez em quando", um "quando chove",... nada disso existe. 
É sempre, sempre aquele ser "autêntico e verdadeiro". Indubitavelmente.

Esse negócio de saber de tudo... Maluco isso, né?





" Não concordo com uma palavra do que dizes, mas defenderei até o ultimo instante seu direito de dizê-la." (Voltaire)

terça-feira, 15 de abril de 2014

segunda-feira, 7 de abril de 2014

COMO VAI VOCÊ?


A conversa começou assim:

Despretensiosa! 

Quase como um bocejo. Como quem está no elevador e pergunta, só pra passar o tempo, até que se chegue ao destino desejado.
Como quem fala do clima, mal preenchendo espaços vazios, e evitando assim qualquer olhar mais demorado, reclama-se do sol que castiga, da chuva que castiga, da seca que castiga, do vento. Um horror! Um horror!... 
Enfim, em termos de meteorologia, o ambiente é sempre castigo! Afinal, quem mandou comer maçã??? Deu nisso. A sorte é que, como dizia Mario Quintana, no paraíso não haverá este assunto, pois lá a temperatura está sempre agradável.

A resposta, no entanto, se fez longa, minuciosa e interminável...
Infinita mesmo!
Já que infinito é o que não tem início ou fim. 
É o que não se sabe bem como começa, e por isso não se tem a menor ideia de como, e se, terminará um dia.
Repetição eterna do que não faz sentido.Por mais que se sinta, e muito.
Resposta detalhada, prolixa, sem fio condutor ou causalidade. 
Nada do "Era uma vez...", "...Foram felizes", ou mesmo "foram encontrados mortos e abraçados" que tanto encantam. 
Não há história, estória ou parábola. Não há lição de moral, chiste ou sermão. 
Não há nada. Nada além das queixas: 
- Pressão alterada, arritmia cardíaca, dor no ciático que irradia, vesícula preguiçosa, humor instável, ansiedade crescente, e por aí vai. Descrição total do metabolismo, desde o acordar, repleto de efeitos rebotes, até a insone madrugada, dependente de remédios que nunca, nunca fazem efeito. 
Eita corpo resistente!!! Há que ser muito saudável pra suportar tudo isso. Tanta prova de que se está vivo, mesmo que vida não haja.

E não adianta mudar de assunto pra ver se muda a resposta, não. Se perguntar "O que tem feito?", a resposta será, inequivocamente, uma lista de especialistas que tomam o lugar do inglês, da natação, das viagens e encontros, dos cursos de artesanato, de música ou de teatro. Em troca destes há o Cardio..., o Pneumo..., o Neuro... e o Hemato... Todos com letra maiúscula. Todos com abreviações tomando o lugar dos apelidos amorosos de outros tempos. E um pronome possessivo denotando total intimidade e demarcação de território. Afinal, o doutor não é qualquer um, é O MEU. Ele é quem sabe tudo de mim. Ele conhece exatamente como eu (não) funciono. 

Do outro lado a pergunta gritando no peito, sem vontade nenhuma de ser falada:
"Mas quando foi que nos transformamos em meras descrições nosológicas? Meros efeitos colaterais de nós mesmos?"




segunda-feira, 31 de março de 2014

NOSSA SENHORA DESATADORA DOS NÓS

Quando a cabeça fica mais perto dos joelhos do que dos braços, é de se preocupar.
Quando um ombro fica perto do outro, protegendo a garganta, quase em arco, é de chamar o doutor.
Se o doutor ajuda ou não, só Deus sabe. Afinal, doutor é que nem cartomante: a gente nunca sabe se vai acertar ou não na previsão ou na dosagem. A única certeza que temos é que uma bronca virá. Fatalmente!
Mas e nó? O que fazer com ele?
Rubem Alves tem um texto belíssimo sobre o surgimento da pipoca:
Daquele milho duro e pequeno que ninguém queria, houve uma tentativa de destruição definitiva. Jogaram-no ao fogo,  elemento designado como único destino ao que é danoso ou inútil, para que o que não presta queime, incinerado até sua total extinção, talvez até por toda a eternidade. 
É o que dizem...
Mas eis que uma barulheira danada de tiroteio, de bang bang mesmo, mostrando que a guerra ainda persistia, por mais que fingissem que mais nada pudesse afligir, aconteceu. 
E daquilo que ninguém queria, sem serventia aparente alguma, surgiu este outro elemento, branquinho, macio e gostoso, que nos acompanha em cada sessão fantástica de cinema, e que é o alívio pras cenas insuportáveis, angustiantes, protegendo-nos da entrega ao total desamparo. Mesmo que "só" na ficção.
É mais ou menos esse o trabalho do psicanalista. O de transformação do fogo. Mistura de alquimista e cozinheiro, que ajuda a tornar os afetos duros e estéreis em algo melhor para a digestão.
Não me venham com desculpas de que já cuidam do corpo na academia ou no check up anual. De que já tomam toda a medicação prescrita. Ou que já rezam, e muito, para que o espírito não tropece em empecilhos ou tentações, acomodando-o à inércia aparente de quem tudo teme e nada faz. 
Seriam meras desculpas. E desculpas só servem para explicar o que não é feito a contendo.
Se ignorarmos todo esse milho duro e pequeno, esse tanto de nós que não desatamos, essas mágoas que crescem no escuro, como o medo infantil, fazendo de conta que não existem, jamais teremos a capacidade de, simplesmente, separar os grãos que nos alimentam daqueles outros que nos atormentam e estragam o gosto de tudo, se estes não forem tratados com o respeito e o cuidado que merecem.
Sem broncas.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

QUESTÃO DE HONRA


Houve um tempo - e já faz tempo - em que se media a honra de uma pessoa pela capacidade que ela tinha de ser vingativa e rancorosa, lavando o que estava "sujo" com sangue e mágoa eterna.
Pra não dar o braço a torcer, de que seu investimento estava furado, de que suas escolhas já estavam apodrecidas, de que havia um cheiro putrefato no ar de coisa vencida, ela se esquartejava inteira, alimentando monstros que carcomiam a alma feito metástases cancerosas (a redundância é exagero didático).
Não sei se as coisas mudaram. 
Não sei. 
Mas tento saber se há saídas outras, mais econômicas, afinal, o que é um braço preservado perto do corpo inteiro torturado?
Por que é preciso a ilusão de se manter na mão o que, inexoravelmente, foge ao controle?
Pra que se assemelhar aos coronéis daquele tempo antigo, os quais sequer se admira, nomeando o que pensas que te pertence e ampliando tuas posses imaginárias, se nada fará com tudo isso que acumulas?
Agora que o ano virou, arrumar o armário e ver o que serve, e o que só causa bolor, pode ser mais que útil. Pode ser mesmo questão de sobrevivência, arranjar espaços para as novidades e novas descobertas, fazendo um enterro decente para o que não cabe mais no agora.
Hei, você, que tenta agarrar e controlar o mundo todo, não tem mais o que fazer, não? 
Seu projeto é falido. Sinto muito!
A não ser que sejas uma centopeia, sempre faltarão braços.