terça-feira, 8 de setembro de 2015

AUTO IMUNE


Depois do tratamento começado, remédios tomados, efeitos colaterais controlados, veio a inversão da ordem.
O corpo, afinal, ataca a doença? A doença, afinal, é cria do corpo?
Quem começou essa briga de criança? Quem se defende e quem ataca?
Qual dos dois merece castigo?
Diante do empate, o embate derradeiro:
"Agora sou eu ou você! Um de nós tem que morrer."
Ameaçou o velho menino , debaixo da cama, escondido no escuro.
O barulho lá fora, de pegada forte, de porta sendo forçada, era um conforto diante dos lobos e bruxas lá dentro.
Dentro de onde?
Dentro do corpo, ora bolas. Onde mais?
No lugar mais escondido e protegido possível.
De onde mais viria o ataque? Naquela hora da madrugada?

EM NOME DO AMOR ou VAMOS NOMEAR OS BOIS


Eu posso até chamar pimenta de sal. 
Rebatizá-la. Fazer cerimônia. Molhar as pontas em água benta e renomear.
Posso registrar em cartório e mudar a filiação. Posso adulterar as datas, falsificar assinaturas, recontar a verdadeira história e dizer que foram descobertos documentos antigos. Que foram feitas pesquisas. Que os cientistas aprovaram.

Mas quando eu colocar na boca...
... vai arder!
Certeza!!!

Eu posso até ouvir gritos e socos na mesa, dizendo que é por amor. Posso aceitar que o dragão lá fora está só prezando por segurança e por isso não deixa ninguém entrar ou sair.  Que é por cuidado que ele sai de casa e volta trôpego, guardando o ruim para a rua. Que é por distração que urubu vira meu loro e o nome é trocado na noite. 

Mas vai ferir!

Posso até dizer que é por limpeza de honra as ofensas e agravos cometidos. Que o ciúme é a maior prova de amor, e das mais puras. E que os escândalos descabidos são por busca de sanidade, para evitar o pior.

Mas machuca do mesmo jeito!

Posso estudar muito e fazer cursos de extensão. Conhecer o mundo e experimentar comidas estranhas. Aprender a negociar e regatear em outra língua. Mas sem nomear as coisas como são, sou nada além de analfabeto. 
Espécie de comida pastosa para quem não desenvolve o maxilar.
O choro contrariado dos bebês e dos bêbados sonolentos.
A contagem atropelada da cantora que pulou o jardim de infância, sem contato com ábaco, entrando na hora do solo.

Mas faltará o básico!
Faltará o nome!
E caberá qualquer palavra errônea, só pra completar a lacuna, preencher a ficha, encher o vazio, empilhar o lixo.

Mas vai faltar espaço!

quinta-feira, 5 de março de 2015

TUDO



Na ânsia de enumerar seus feitos, orgulhosa do novo recorde, ela resumiu assim, numa só palavra, o que esperava como recompensa.

Um reconhecimento merecido a quem tanto dedicara a uma só causa.
Um troféu. Uma tatuagem no braço. Uma declaração...
Mas NADA vinha!

Desespero diante de tanta ingratidão. Contas a receber. Cálculos sempre injustos. Desfeita do não-retorno.

Parecia até poesia, se não doesse na carne. Se não doasse. 
Para tanto feito, tanta desfeita:
- Eu fiz TUDO por ele - Repetia. TUDO.

Assim ela sintetizava, poupando-se de enumerar o que nem cabia no mundo mais, de tão imenso.
'Tudo' é sempre muita coisa. É sempre excessivo e aterrador. Plenitude falsa, que inflige grandiosidade e restringe qualquer detalhe. O Tudo finge! 
Qualquer coisa menor, mais simples, coisa de gente mesmo, enfim, perde a importância. Passa despercebido.

Ora bolas, o Tudo é para super-heróis. 
Para quem salva o mundo todo. Para quem tem poderes demais. Não pra quem pega resfriado. Não para quem fica feliz pregando um novo quadro na parede, fazendo um desenho ou um bolo. Para quem se alivia bebendo um simples copo d´água nesse tempo de escassez.
Tudo é muito grande. É muita coisa. Não há mensuração que dê conta.
Impossível mastigar e engolir. Sobra. Cai da boca. Quebra os dentes.
Sobra o que de nada serve. O que ocupa muito espaço e invade. Casa entulhada de coisas pra disfarçar vazios.
No tudo há tanto que falta.
Falta a troca justa e milagrosa do fazer junto.

O que espera receber em troca quem faz tudo por alguém ?
Como se paga? Como se faz também?

Resta só um NADA a se fazer. 
Impotência aterradora. 
Não-ser como única forma de existir.

- Você entra com esse tudo. E me sobra esse nada aqui para colaborar.

Assim foi feita a prova dos nove, contabilizando a relação.