sexta-feira, 31 de julho de 2009

LÂMINA



Antigamente, mas muito antigamente mesmo, os cuidados dos doentes eram destinados à Igreja, que diagnosticavam sempre os males do corpo como influência de algum demônio ou fases da lua e interferência dos mortos.
Muita gente morreu por isso, pois quando a reza não dava mais conta, o negócio era tirar o demônio na faca. Tirava-se demônio, mal olhado, tripa, vida, tudo. Bastava um singelo corte e podia-se comemorar a cura lá no enterro do infeliz.
Passaram-se os anos, o mato cresceu ao redor, e os leigos começaram a exercer umas curas ali, outras acolá, sem precisar de tanto procedimento cirúrgico. Até que veio um cabra metido a pensar e existir - um luxo só - e separou tudo.
Alma é alma. Corpo é corpo. E não se fala mais nisso. O casal se separou e nunca mais se olhou nos olhos.

Ele - o existente pensador - podia assim dissecar passarinhos vivos, e seres humanos também, já que a alma nada tinha que ver com o corpo. Este era pura matéria, e não alcançava as questões profundas e perturbadoras que a alma lhe colocava.
Fomos condenados desde então a falar em dois monólogos desentendidos, sem sincronia, sem sintonia, meio esquizo, meio dividido, meio... Meio metade.
Feito sol e lua que não se encontram, salvo os fenômenos de eclipses psicossomáticos que ainda teimamos em observar a olho nu, essa divisão não ficou só ali nos passarinhos, nem na equação lógica do ser que pensa que existe. Ela insiste em bater o pé e em exigir, como aquela pergunta perversa que se faz às crianças: "De quem você gosta mais? Da mamãe ou do papai?"
E a gente, que não suporta ver uma pergunta sem resposta, sai correndo prá completar as lacunas e escolher um só, como se os candidatos brigassem na rinha. E como se a gente tivesse alguma coisa a ver com a briga.
O Woody Allen, debochando dessa briga do corpo com a alma, diz que a gente deve escolher que metade preferimos. Se a de cima ou a de baixo.
Eu, que não sou cineasta, nem tampouco cientista, só fico na preguiça - se eu entrar nessa briga, vou perder sempre, seja apanhando do corpo, seja da alma irrequieta - e coloco os dois trancados no meu quarto-pele, prá ver se eles param de brigar e saem do castigo de mãos dadas, bem amiguinhos.

8 comentários:

Miriam Esperança disse...

Ola Soraya, adorei a sua forma de brincar com as palavras nesse texto, mas como não poderia deixar de fazer um questionamento mesmo que simplorio. Será que foi assim; preguiçosamente que prendendo corpo e alma no quartinho afim de que eles pudessem buscar o entendimento que inventaram o manicômio?
Um forte abraço.
Miriam Esperança

soraya.magalhaes@gmail.com disse...

OI Miriam,
vc acredita mesmo que manicômii quer saber de alma ou mesmo de corpo?
manicômios querem saber de amordaçar. e não foi isso que falei em momento algum.
nem tirar demônios, nem trancafiá-los.
dá prá fazer uns acordos, umas mandingas...
que tal?

Alex Cojorian disse...

NADA, ABSOLUTAMENTE NADA, A DECLARAR!

soraya.magalhaes@gmail.com disse...

OI Alex,
só vc mesmo prá vir aqui dizer NADA.
Fiquei aqui pensando se era um NADA bom ou NADA ruim. mas... NADA é NADA. então vim só agradecer o NADA que me deste. E acho que era TUDO que vc podia me dar.
Bjos prá vc

LIZ LAURA disse...

OLÁ SORAYA, SOU UMA ADMIRADORA DOS QUESTIONAMENTOS E UMA FÃ INCONDICIONAL DA ALMA. VC É UM SORO E HIDRATANTE PARA AMBOS. TRATANDO-SE DE UMA ESCORPIANA, EU CREIO QUE VC PARALISA NOSSOS SENTIDOS COM O INTUITO DE ENCARARMOS- COM A CAUDA DE UM ESCORPIÃO- DE BAIXO PARA CIMA O MEDO TEMPORÁRIO DA NOSSA EXISTÊNCIA. QUANDO ACEITARMOS DE CORPO E ALMA OS NOSSSOS VENENOS-OU SEJA-NOSSOS MEDOS E, ABRAÇARMOS AFETUOSAMENTE TAIS ESTRANGEIROS DE NÓS MESMOS. ESTES "OUTROS" NÃO SERÃO MAIS PROCESSADOS NO CORPO COMO NOSSOS INIMIGOS E, PORTANTO, NÃO DEIXARÃO MAIS VESTÍGIOS DE ANIQUILAMENTO.DESSE MODO, A MENTE NOS LIBERTARÁ DAS ANTIGAS FERIDAS E NOS IRÁ CURAR DE NOSSA PRÓPRIA NATUREZA, INFELIZMENTE, AINDA PRESA POR MEDO DE SERMOS QUEM SOMOS.
ADORO OS TEUS TEXTOS!
MUITO SUCESSO!!!

Luana Zanelli disse...

Soraya
Encontrando você pelas portarias não sabia que escrevia tão bem.
Quem me mandou seu blog, foi o Thales, amigo que nem lembrava que tinhamos em comum, além do Be.
Achei muito bem escrito, poético e irônico teu texto. Gosto de ironias. Claro que só as bem escritas, como a tua.
Parabéns.
Beijo

Marly Morais disse...

“Olha a faca!”, Descartes!!! Vc cortou a “laranja humana”, agora só nos resta fazer uma laranjada! RS

Soraya!!! Parabéns pelo texto!!! Criativo, bem humorado e questionador. Tudo de bom!!!

Abraço!

Marly Morais

Vinicius Guarilha disse...

Querida amiga Soraya,

Que saudades de você. Revisitei o seu site por acaso, ocasião do destino. Vi as postagens que você fez com as minhas fotos e me senti super feliz de poder contribuir com o seu trabalho. Te admiro muito e espero que você sempre tenha força para continuar ajudando as pessoas.
Quando você vem à Brasília? Tanta novidade pra te contar. Me passa o seu email pra gente se comunicar melhor.

Um beijão

Vinicius Guarilha