segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A CRASE


Foi quando meu pai me disse: "Filha, você é a ovelha negra da família!"


Nada disso, esse pai é o da Rita Lee. E nós sabemos que ela não é a parte genial dos mutantes.
Meu pai, que é só meu e não dos meus irmãos, me disse, na verdade, uma frase muito carinhosa, querendo me mostrar alguma coisa que ele julgava desconhecida por mim, quando mencionou, com voz de trovão que lhe é peculiar mas muito dócil ao mesmo tempo (Como ele consegue fazer isso???):
"Minha filha, você tem sérios problemas com a  crase."
E eu, me desculpando, me levantei rapidamente, arrumando a mesa do jantar e me prontificando a buscar mais bebida.
Me confundem os assentos. Nunca sei onde é lugar de quem.
Acomodo tios que não se falam um do lado do outro. Incomodo. Firo com qualquer alicate de unha o Português, o Espanhol, e todo latinismo que me chegue perto. Com alemães não me meto. Não que eles possam entender, claro. Qualquer arma, prá minha língua, é letal.
Mas faço isso (ou será isto?) descaradamente. Latindo alto como todo cachorro pequeno. Sem preconceitos ou cotas.
O acento certo me confunde na crase até por hoje eu não saber mais o que é palavra feminina e o que é artigo comum de dois gêneros.
Os lugares são mutantes - estes sim. Mas os transeuntes? Esses passarão, esses vão á casa da Noélia, voltam da casa da Mãe Joana, e descansam no banco da praça como se a casa chegassem.
Vejo a Mãe Joana pedindo cuidados como se filha fosse. Vejo os juniores ensinando seniores-chefes passando-lhes todo o serviço. Vejo bebês cuidadores, médicos-monstros, pedintes oferecidos. Vejo quartos grandes que não são mais dos pais. Aliás, o quarto dos pais já não tem segredo algum além do ursinho de pelúcia.
Me perco na entrada do banheiro do restaurante sem saber qual porta é reservada a ele (ou será ela???)
Realmente meu pai, podes me estapear e palmar minha mão. Não tenho ideia de onde posso me sentar. 
A mim é impossível escolher um assento só.
Mas não vejo isto (ou será isso?) como erro, não.
Eu chamo só de mistura de sotaques e danças típicas desse mundo grande, grande.
É que não há brincadeira mais saudável e fisioterapia mais eficaz aos engessados por longa data do que a dança das cadeiras.

2 comentários:

Rogério Silva disse...

Na dança das cadeiras o que menos importa é a cadeira em si, mas o acento dela (ou nela).

Rita Lee e os mutantes mostram bem essa coisa de quem não tem problemas com a crase. “De frente, de trás / Eu te amo cada vez mais / De frente, de trás / Pega rapaz, me pega rapaz (...) De frente, de trás, cada vez mais!”

A cadeira e à cadeira ficam bem diferentes, se postas uma à outra. Isso me tras à lembrança o samba de Lupicinio Rodrigues.

“Se acaso você chegasse / No meu chatô encontrasse aquela mulher / Que você gostou / Será que tinha coragem / De trocar nossa amizade / Por ela que já te abandonou.”

Não usar a crase faz da cadeira um lugar comum, mas com a crase o lugar é outro. Ou pode ser de outro.

"Eu falo porque essa dona / Já mora no meu barraco / À beira de um regato / E um bosque em flor // De dia me lava a roupa / De noite me beija a boca /E assim nós vamos vivendo de amor."

Os poetas sempre sabem nos dizer aonde colocar o acento...

Julie de Pádua disse...

Olá !!

amei seu texto !!
parabéns !!!