segunda-feira, 28 de abril de 2008

TROCA DE EUS


Entro numa livraria qualquer. Desavisada e ingênua. Só prá olhar as novidades mesmo.
Impressionante como os últimos lançamentos ensinam tudo sobre mim. sobre você. sobre qualquer um.
Tudo prá gente aprender a controlar de vez o que eles chamam de eu, prometendo mundos e fundos com esse poder todo exercido sobre nós mesmos.
Nada importa. Nada é obstáculo. Nada me atrapalha. Só eu. ops: só o eu.
Só ele - o eu - vale alguma coisa.
Só ele tem superpoderes de saber e prever tudo, planejando exatamente o que acontecerá. Isso se você seguir o manual direitinho. Claro.
...E passeio pela livraria tentando fugir do eu - de mim mesma? leitura pobre essa - e vendo o que uns outros mais interessantes têm prá me dizer.
E controlada e sabendo o que procurava pois já domino o eu - hahaha - encontro uma das coisas mais lindas.
O Ferenczi, meu analista favorito, faz uma longa explanação sobre o ato sexual. E eis que ele coloca o beijo como um fator de dissolução do ego.
O beijo na boca, somado ao abraço, são elementos de dissolução do ego, pois nesse momento ninguém precisa muito de ego. O que se quer é se misturar ao outro, procurando um ritmo, uma respiração, um jeito de estar junto sem competição prá ver quem domina, quem está certo, quem comanda.
É o beijo o instrumento primordial para se abrir mão do que quer que seja chamado de eu. Sem isso, qualquer troca fica, inexoravelmente, impossível.
Fico aqui encarnando a Chapeuzinho, me perguntando sem parar:
-Prá que esse ego tão grande?

domingo, 20 de abril de 2008

DIGERINDO


E a gente lê as últimas notícias de um crime absurdo e fica enjoado, se perguntando o motivo.
Por que? Por que?
E logo, logo virão um monte de explicações dos 'especialistas' falando sobre um possível uso de drogas, sobre a possessão demoníaca, sobre sintomas de epilepsia, sobre acerto de contas de vidas passadas, sobre resquícios de uma infância mal curada, sobre sei lá mais o que que simplesmente não dá conta.
Nem quero eu aqui engordar o time dos que explicam tudo, caindo naquela esparrela de quem nunca leu Freud atribui a ele. Freud não explica. Ele investiga. O que é bem diferente.
Mas o tema aqui é outro. Vai bem além de tentar entender quem pratica crimes contra quem quer que seja.
Meu assunto aqui é digestão. Sim, pois a gente se acostuma a comer nosso pê-efe de todo dia, com grãos, hortaliças, proteínas e tudo que uma dieta saudável exige. E de repente vem um bloco de concreto, um monte de lixo enfiados goela abaixo e a gente se vê obrigado a engolir, tentando dar sentido àquela montoeira de coisa nenhuma que incomoda, dá náusea, tira o sono e remexe em tudo o que deveria ficar inerte, intocado, intovável.
A máquina de fazer sentido chamada consciência fica agora completamente ineficaz. E a estranheza diante do monstruoso que pode ser o humano esfrega na cara, até de quem não quer ver, um aspecto bastante desconhecido e pouquíssimo aceito entre os seres.
Não bastam anti-ácidos prá facilitar a digestão. Não adianta mamão com laranja, actívia ou qualquer coisa do gênero.
O homem é bicho desconhecido pro homem.
E quem não se choca com isso, quem consegue digerir essa concretude toda como se fosse normal, comum posto que frequente, prá mim, já deixou de ser humano há muito tempo.
Assim, engolindo tudo como se fosse tudo a mesma coisa, a gente deixa até mesmo de perceber o pôr-do-sol como espetáculo. E passa a achar tudo 'muito natural'.

foto de Vinícius Guarilha

segunda-feira, 14 de abril de 2008

DATANDO


Demorei um tempinho até cair minha ficha, lendo a obra de Freud, que esta era uma obra datada.
O que significa que às vezes ele pode parecer contraditório se a gente não prestar atenção em que contexto ele sai formulando hipóteses por aí. Até que percebi que isso não se dá só na obra do Freud, não.
Bingo. Achei a fórmula: Há que se prestar atenção no cabeçalho dos acontecimentos.
Vira e mexe saem umas 'pesquisas científicas' (sic) por aí abordando o tempo de duração dos afetos. Mas eu assumo que não consigo me preocupar muito com essas validades pré estabelecidas. O que me preocupa é a data de fabricação. E mais ainda, a data de declaração.
Acho que quando a gente registra uma declaração - seja de amor, ódio, amizade ou voto prá síndico - tem que assinar, colocar local, data, e de preferência, substância consumida,e ainda a música de fundo.
Assim a gente até entende com outros olhos aquele pedido de casamento depois de 2 garrafas e meia de vodka ouvindo um bolerão. Ou a briga dos melhores amigos até rolarem no chão depois de uma frasesinha boba envolvendo a mãe de alguém. E nem precisa fortalecer a ressaca lembrando do episódio.
Outro dia eu ouvia qualquer coisa assim: "Ele é tão carinhoso. SEmpre foi. Mas de repente, quando os gêmeos nasceram, ele esfriou um pouco, sabe? E desde então nunca mais ele me beijou, prá vc ter uma idéia."
Eu, tola, pergunto a idade dos gêmeos.
"Os meninos têm 36. São uns amores".
O registro tá tão atual né? Mas como em banco e previdência, às vezes é preciso um recadastramento. Uma confirmação de que ainda é aquele mesmo - pelo menos em uma coisa ou outra - e concorda com o que disse outro dia, outro mês, outro ano...
Enfim, tá aqui minha proposta de datar as declarações e de que elas precisem ser sempre renovadas.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

MALDIÇÃO


Quem não se lembra de Malévola, a bruxa má que roga uma praga na Princesa Aurora - a bela que dorme - quando esta ainda era um bebezinho?
A gente cresce e acha que essas historinhas são pura ficção prá distrair as crianças e enriquecer o imaginário delas.
Só que a ficção às vezes vira realidade e nem nos damos conta disso.
Outro dia eu via o filme 'O passado' em que uma mulher louca de pedra persegue o ex marido até acabar com tudo o que ele conseguiu construir na vida. E lhe roga uma praga mais ou menos assim; "Quando você estiver sozinho, só terá a mim."
Só que a mesma faz tudo prá chegar logo esse momento de solidão do pobre diabo até que sua profecia se concretize.
Na vida real (heim?) não é muito diferente do filme, não. Mas há como fugir disso, há como reescrever o roteiro, há como quebrar o encanto lançado simplesmente olhando bem firme prá ele num trabalho prá lá de pai de santo ou pastor universal.
O propósito na clínica psicanalítica está justamente em tentar descobrir outras saídas, outros modos de ação, fechando o corpo de vez e começando a escolher um pouquinho só no que acreditar, tirando das maldições o caráter de verdades incontestáveis, absolutas.
É que geralmente quem roga a tal praga de madrinha é alguém que exerce um poder fenomenal sobre a gente. Daí desmentir essa pessoa significa também desmentir todas as outras coisas importantes que ela falou. Mas por que levar as "pré-destinações" tão à sério?
Só questionando isso a gente pode encontrar um outro destino, bem diverso do já escrito pelas bruxas de plantão, e dessa vez abrir espaço para, pelo menos, experimentar o diferente.