segunda-feira, 31 de março de 2014

NOSSA SENHORA DESATADORA DOS NÓS

Quando a cabeça fica mais perto dos joelhos do que dos braços, é de se preocupar.
Quando um ombro fica perto do outro, protegendo a garganta, quase em arco, é de chamar o doutor.
Se o doutor ajuda ou não, só Deus sabe. Afinal, doutor é que nem cartomante: a gente nunca sabe se vai acertar ou não na previsão ou na dosagem. A única certeza que temos é que uma bronca virá. Fatalmente!
Mas e nó? O que fazer com ele?
Rubem Alves tem um texto belíssimo sobre o surgimento da pipoca:
Daquele milho duro e pequeno que ninguém queria, houve uma tentativa de destruição definitiva. Jogaram-no ao fogo,  elemento designado como único destino ao que é danoso ou inútil, para que o que não presta queime, incinerado até sua total extinção, talvez até por toda a eternidade. 
É o que dizem...
Mas eis que uma barulheira danada de tiroteio, de bang bang mesmo, mostrando que a guerra ainda persistia, por mais que fingissem que mais nada pudesse afligir, aconteceu. 
E daquilo que ninguém queria, sem serventia aparente alguma, surgiu este outro elemento, branquinho, macio e gostoso, que nos acompanha em cada sessão fantástica de cinema, e que é o alívio pras cenas insuportáveis, angustiantes, protegendo-nos da entrega ao total desamparo. Mesmo que "só" na ficção.
É mais ou menos esse o trabalho do psicanalista. O de transformação do fogo. Mistura de alquimista e cozinheiro, que ajuda a tornar os afetos duros e estéreis em algo melhor para a digestão.
Não me venham com desculpas de que já cuidam do corpo na academia ou no check up anual. De que já tomam toda a medicação prescrita. Ou que já rezam, e muito, para que o espírito não tropece em empecilhos ou tentações, acomodando-o à inércia aparente de quem tudo teme e nada faz. 
Seriam meras desculpas. E desculpas só servem para explicar o que não é feito a contendo.
Se ignorarmos todo esse milho duro e pequeno, esse tanto de nós que não desatamos, essas mágoas que crescem no escuro, como o medo infantil, fazendo de conta que não existem, jamais teremos a capacidade de, simplesmente, separar os grãos que nos alimentam daqueles outros que nos atormentam e estragam o gosto de tudo, se estes não forem tratados com o respeito e o cuidado que merecem.
Sem broncas.

Um comentário:

Anônimo disse...

Belo texto, verdadeiro.

Abraços