terça-feira, 30 de agosto de 2016

AUTOCONHECIMENTO?


"Você, quando faz essa cara, eu já sei. Te conheço muito bem"!

Como não havia espelhos por perto, ele jamais soube que cara era aquela, tão fácil de decifrar. À qual expressão ela se referia como sendo a personificação perfeita do seu mais íntimo ser. Aquilo que seria a auto (dele)- definição (dela).
Logo ele, que já passeara tanto pelos mundos. Que já vira tanta coisa, tanta gente, tanta história. Que era mesmo chegado a um devaneio e a uma contemplação, mas que se misturava, também, muito bem à multidão... 
Logo ele que, como quase todo mundo, já mudara suas convicções e pratos preferidos tantas vezes... Que já usara cada máscara tão diferente uma da outra, para mostrar e para esconder o que pensava...
Não teve jeito. 
Desta vez, — ela alegava: —  fora descoberto em praça pública. Por um simples olhar e morder de lábios. 
O interessante é que, à medida que ela narrava e descrevia aquele que deveria ser perfeitamente apreensível num instante, ele de nada sabia. Não se reconhecia mais naquela roupa que, um dia, já parecera lhe caber bem. 
A mesma expressão de outrora, hoje era usada para outros assuntos. E por mais que, na fotografia, ela insistisse, no canto do olho se podia perceber tudo muito diverso.
Ela, inquisidora, ordenava-lhe a confissão. 
Ele, estranhando, só sabia-se EM CONSTRUÇÃO.

E continua...




terça-feira, 3 de maio de 2016

DIVISÃO DE BENS/ DIVISÃO DE MAUS/ DIVISÃO DE MALES


"Eu sinto muito!"
Ela falou com empatia sincera, tentando aliviar a dor que não era sua. Roubar um pouquinho pra si. Dividir o peso. Ajudar na faxina, sei lá...
Qualquer coisa que pudesse ajudar.
Chegou mesmo a se jogar no chão e chorar, como se a úlcera corroesse seu estômago, e não o dele.
Quase desmaiou.
Quase. Teve até taquicardia e fez escândalo com os médicos, dividindo a atenção. 
Mas de pouco serviu.
Acontece que entre ela e ele existem as peles. Armaduras que não se fundem. Divisões rigorosas dos seres. E, por mais que se reze pedindo ao além. Por mais que se queira estar junto e se responsabilize, por mais que se tente delirantemente a simbiose, cada um só pode cuidar de sua própria dor do existir.
Por mais que se queira, por mais que se tente, jamais, nunca, ninguém conseguirá dividir, por exemplo, uma dor de dente.
Mesmo que o ser mais condoído e sensível esteja ao lado. Mesmo que ele se jogue no chão e urre. Mesmo que desmaie. A dor de dente não será dividida, diminuída, ou parcelada pelos solidários ou pelos solitários.
Infelizmente é assim.
Não dá pra ser diferente.
A não ser que... Mas o casal mais famoso da literatura já mostrou não ser tão saudável dividir tudo assim. Tá aí o Romeu que não me deixa mentir. 
Romeu? 
Romeu????

sábado, 30 de abril de 2016

ESTÁVEL



A samambaia de minha tia nunca deu trabalho. Não secou por falta de água, não murchou ao sol, não reclamou da sombra, nem uma lagarta sequer tentou comê-la.
Ela estava lá, sempre lá. Onde quer que fosse, ela estaria sempre ali onde a colocássemos. Sem nada a dizer, gemer ou blasfemar.
Assim eram os deprimidos sob controle. Os que tomam medicamentos há 15 ou 20 anos. Sem dar trabalho e sem trabalhar também. Sem sorrir ou chorar ou tentar cortar os pulsos. Sempre ali. Sob o sol, sob a chuva ou mesmo a fome.
Tudo sob controle. Devidamente medicados. Mas e o resto da vida?
Aquele resto que espirra? Que reclama do calor e do frio? Aquele que agradece o calor ou o frio? Aquele que liga pros amigos, xinga, ri, e levanta e dança quando toca aquela música? Não qualquer uma. Aquela!!!!
Ah, mas para isso tem que fazer terapia. Custa caro - não importa quanto, o preço é muito alto. É longe. Mal se tem tempo.
Deixa pra lá. 
Vamos ficar assim, samambaias. Choronas por dentro. Mas estáveis por fora.

DA ORDEM DO IMPOSSÍVEL

Diante do imperativo atual de só ter pensamentos positivos, ela se deitou em feto e se perguntou, ao estilo Jorge Luís Borges: "De quem eram os pensamentos, afinal"?!?
Quase em revolta. Quase. Choramingava, se debatendo.
"Eu? Ter pensamentos positivos? Mas há momentos em que não tenho pensamento algum. 
É o pensamento quem me tem. É ele quem me possui. É ele quem toma conta e dá as ordens. Às vezes, o único fator positivo e certo é a certeza de que um dia será o fim."

Onde foi que li historinhas que suprimiram a madrasta, o lobo mau, a bruxa, ou mesmo a bagunça que o Saci Pererê fez? Acho que não cheguei ao final, dormi no meio. Ficou assim sem emoção. Não consegui me identificar com nada.
Onde será que existe este pensamento limpinho, embalado à vácuo?

Se eu purificar meu pensamento, chego ao ponto de exterminar pessoas, alegando que algumas sujam o meu planeta fantástico. 
Então será um pouco problemático, pois estabelecerei critérios de assepsia que variarão de acordo com meu humor do dia. Hoje brigo com um velhinho na fila do banco. Amanhã estabeleço que velhos são sujos e inúteis, e os elimino. Roubo sua aposentadoria. Enveneno sua comida e está feito. 
Já na semana que vem digo que um menor de idade tentou me assaltar e... Está tudo limpo. Saio atirando pela rua de madrugada, Explodo escolas, escondo os livros escolares, saboto as aulas e pronto. Em pouco tempo não haverá um que atravesse a rua e passe por mim. Não haverá um sequer. Termino assim o serviço de Herodes, desta vez sem deixar falhas. Faxina bem feita.
Limpinho assim, né?!? Puro e branco como a neve!
Mas não resolve. Nem adianta.
Você - e todo mundo - terá que se haver com o lado negro da força. E seu pensamento sabe muito bem disto. 
Ah, sabe!

REVISTA CARAS ou INTIMIDADE

No princípio era o verbo...
Então vieram os jornais, revistas, informativos da igreja, aplicativos just in time... e os livros ficaram pesados demais.
A máxima de adquirir informação como instrumento primordial para a construção de sabedoria ou estratégia de ação foi divulgada aos ventos. Mas de que informação estou falando?
O que me faz comprar uma revista e me deparar com milhares de babados e taças de champanhe se não estou lá naquelas ilhas?
Ora bolas, se eu souber tudinho da vida do outro, fico tão íntima dele, mas tão íntima, que é capaz até de ele me chamar pra próxima feijoada ou batizado na família. 
Por isso eu tenho que saber direitinho a metragem da bunda da mulher do ministro, por isso eu defendo o uso da força e do "atira depois pergunta" como forma de me defender da bala.
Outro dia ouvi de uma pessoa que admiro bastante: "O político X tem boas ideias, mas não gosto dele pois sei muito bem que ele tem uma amante".
Ora bolas de novo, mas isso é problema dele com a Hillary dele. Não meu. é particular demais eu querer saber detalhes tão pequenos de vós dois, se não formamos o "nós".
Meu único interesse nesse caso é: Qual verba ele gasta com isso, se a dele ou a minha? Se a privada, ou se a pública. 
No mais, ele que faça o que bem entender com seu corpo, contanto que não agrida ninguém.
Onde foi que a exigência de castidade começou a vigorar sobre ideias e ações? 
Quando foi que a linha que separa vida íntima de vida pública foi apagada?
Por que me exponho e acompanho, sem piscar, a exposição dos outros sobre o que não me diz respeito?