sábado, 30 de abril de 2016

ESTÁVEL



A samambaia de minha tia nunca deu trabalho. Não secou por falta de água, não murchou ao sol, não reclamou da sombra, nem uma lagarta sequer tentou comê-la.
Ela estava lá, sempre lá. Onde quer que fosse, ela estaria sempre ali onde a colocássemos. Sem nada a dizer, gemer ou blasfemar.
Assim eram os deprimidos sob controle. Os que tomam medicamentos há 15 ou 20 anos. Sem dar trabalho e sem trabalhar também. Sem sorrir ou chorar ou tentar cortar os pulsos. Sempre ali. Sob o sol, sob a chuva ou mesmo a fome.
Tudo sob controle. Devidamente medicados. Mas e o resto da vida?
Aquele resto que espirra? Que reclama do calor e do frio? Aquele que agradece o calor ou o frio? Aquele que liga pros amigos, xinga, ri, e levanta e dança quando toca aquela música? Não qualquer uma. Aquela!!!!
Ah, mas para isso tem que fazer terapia. Custa caro - não importa quanto, o preço é muito alto. É longe. Mal se tem tempo.
Deixa pra lá. 
Vamos ficar assim, samambaias. Choronas por dentro. Mas estáveis por fora.

DA ORDEM DO IMPOSSÍVEL

Diante do imperativo atual de só ter pensamentos positivos, ela se deitou em feto e se perguntou, ao estilo Jorge Luís Borges: "De quem eram os pensamentos, afinal"?!?
Quase em revolta. Quase. Choramingava, se debatendo.
"Eu? Ter pensamentos positivos? Mas há momentos em que não tenho pensamento algum. 
É o pensamento quem me tem. É ele quem me possui. É ele quem toma conta e dá as ordens. Às vezes, o único fator positivo e certo é a certeza de que um dia será o fim."

Onde foi que li historinhas que suprimiram a madrasta, o lobo mau, a bruxa, ou mesmo a bagunça que o Saci Pererê fez? Acho que não cheguei ao final, dormi no meio. Ficou assim sem emoção. Não consegui me identificar com nada.
Onde será que existe este pensamento limpinho, embalado à vácuo?

Se eu purificar meu pensamento, chego ao ponto de exterminar pessoas, alegando que algumas sujam o meu planeta fantástico. 
Então será um pouco problemático, pois estabelecerei critérios de assepsia que variarão de acordo com meu humor do dia. Hoje brigo com um velhinho na fila do banco. Amanhã estabeleço que velhos são sujos e inúteis, e os elimino. Roubo sua aposentadoria. Enveneno sua comida e está feito. 
Já na semana que vem digo que um menor de idade tentou me assaltar e... Está tudo limpo. Saio atirando pela rua de madrugada, Explodo escolas, escondo os livros escolares, saboto as aulas e pronto. Em pouco tempo não haverá um que atravesse a rua e passe por mim. Não haverá um sequer. Termino assim o serviço de Herodes, desta vez sem deixar falhas. Faxina bem feita.
Limpinho assim, né?!? Puro e branco como a neve!
Mas não resolve. Nem adianta.
Você - e todo mundo - terá que se haver com o lado negro da força. E seu pensamento sabe muito bem disto. 
Ah, sabe!

REVISTA CARAS ou INTIMIDADE

No princípio era o verbo...
Então vieram os jornais, revistas, informativos da igreja, aplicativos just in time... e os livros ficaram pesados demais.
A máxima de adquirir informação como instrumento primordial para a construção de sabedoria ou estratégia de ação foi divulgada aos ventos. Mas de que informação estou falando?
O que me faz comprar uma revista e me deparar com milhares de babados e taças de champanhe se não estou lá naquelas ilhas?
Ora bolas, se eu souber tudinho da vida do outro, fico tão íntima dele, mas tão íntima, que é capaz até de ele me chamar pra próxima feijoada ou batizado na família. 
Por isso eu tenho que saber direitinho a metragem da bunda da mulher do ministro, por isso eu defendo o uso da força e do "atira depois pergunta" como forma de me defender da bala.
Outro dia ouvi de uma pessoa que admiro bastante: "O político X tem boas ideias, mas não gosto dele pois sei muito bem que ele tem uma amante".
Ora bolas de novo, mas isso é problema dele com a Hillary dele. Não meu. é particular demais eu querer saber detalhes tão pequenos de vós dois, se não formamos o "nós".
Meu único interesse nesse caso é: Qual verba ele gasta com isso, se a dele ou a minha? Se a privada, ou se a pública. 
No mais, ele que faça o que bem entender com seu corpo, contanto que não agrida ninguém.
Onde foi que a exigência de castidade começou a vigorar sobre ideias e ações? 
Quando foi que a linha que separa vida íntima de vida pública foi apagada?
Por que me exponho e acompanho, sem piscar, a exposição dos outros sobre o que não me diz respeito?